Mitos e verdades sobre o corneteiro Lopes intrigam até hoje historiadores e pesquisadores

“Cavalaria, avançar e degolar”. Entretanto, o Exército brasileiro não tinha sequer uma unidade de cavalaria. Seria esse um ato de rebeldia do corneteiro sem disposição para aceitar a iminente derrota ou uma atrapalhação das ordens dadas pelo comandante diante do caos de uma guerra? Não se tem ideia. Que a Independência na Bahia foi um processo singular, dramático e épico, os registros históricos não negam. Porém, o que dizer sobre a vitória na Batalha de Pirajá, em novembro de 1822, ter sido garantida por um toque equivocado de uma corneta? Mitos e verdades sobre o corneteiro português que lutava do lado dos baianos, Luís Lopes, intrigam e até hoje desafiam a mente de historiadores, estudiosos e pesquisadores. “Os brasileiros estavam inferiorizados e ante uma derrota iminente o comandante considerou melhor deixar o campo de batalha do que ser derrotado. Em vez de obedecê-lo, o corneteiro Lopes tocou “Cavalaria, avançar e degolar”. Os portugueses não sabiam que não tínhamos cavalaria. Julgando que os baianos haviam ganhado reforços, os militares portugueses é que recuaram, perdendo uma batalha que estava quase ganha”, afirma o jornalista, pesquisador e diretor do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), Jorge Ramos. Ninguém sabe ainda dizer ao certo o que se passava pela cabeça do corneteiro Lopes, que na guerra serviu na divisão da direita, comandada pelo coronel pernambucano Barros Falcão. Essa era uma das alas do Exército chefiado pelo General Labatut. “Ainda que haja quem questione a existência desse episódio e que sejam reticentes sobre o corneteiro Lopes, há evidências, sim. Todo fato histórico relevante em uma epopeia como foi o 2 de Julho tem os seus preceitos também ligados à história oral”, defende Jorge Ramos. Segundo ele, quem primeiro citou corneteiro Lopes foi Inácio Accioly, cronista no século 19. Em Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia (1835-1843), Inácio Accioly afirma ter conhecido pessoalmente Luís Lopes já idoso e que ele tinha virado um mendigo nas ruas de Salvador. Outro que citou a existência dele e fez referência ao episódio da Batalha de Pirajá foi Ladislau Titara, o poeta-soldado que escreveu o Hino ao 2 de Julho. “Titara era secretário do Exército Libertador. E em 1859, quando o Imperador Dom Pedro II visitou a Bahia e esteve em Pirajá, o Barão de Cajaíba, Alexandre Gomes de Argollo Ferrão – um dos presentes na Batalha de Pirajá -, confirmou ao imperador que o fato era verdadeiro. Isso está no livro de memórias de Dom Pedro II. Na história da Bahia contada pelo povo, o episódio do Corneteiro Lopes está consagrado”, ressalta. Já a historiadora, mestre em História Social, professora e coordenadora da Unijorge, Luciana Onety Sobral, vê as dúvidas que rondam a figura do corneteiro como algo que faz a vitória parecer que foi um acaso inusitado demais para ser verdade. “Faltam fontes históricas que provem não apenas a existência do corneteiro, mas seu feito. A mim, parece muito pitoresca essa versão, além de desqualificadora dos feitos de guerra dos baianos, pois a vitória seria o resultado de um equívoco por parte de um soldado sem grande importância e não o fruto de lutas travadas pela liberdade e independência”, opina. Não dá para negar a singularidade em torno da figura do corneteiro, sobretudo, ao se tratar de uma batalha que decidiu os destinos da guerra contra Portugal. Curiosidade que despertou o interesse do jornalista português Ricardo Duarte, que vive em Salvador desde 2019. Em Portugal nada se diz sobre a história da Independência da Bahia. “Infelizmente nunca ouvi nada a respeito na escola. É um tema que não consta nos currículos. O corneteiro Lopes era um português muito baiano, felizmente. É uma história genial. É algo que precisa ser contado, reforçado, explicado. Portugal não tem noção da importância da Bahia na história do nosso país”. Também jornalista português, Jorge Alegria concorda. Ele conta que já visitou a Bahia cinco vezes. “Em Portugal, a história é praticamente desconhecida. Eu, por exemplo, conheci mais aspectos sobre a independência em uma das viagens a Salvador, quando li documentos no Gabinete Português de Leitura”. Sobre o conterrâneo Luís Lopes, o nome de Tiradentes por lá é mais conhecido do que o do corneteiro: “Todavia, ao ler um pouco sobre Lopes, vejo que representou a ambiguidade típica de muitos portugueses ou luso-brasileiros que se sentem tanto portugueses como brasileiros. Qualquer das decisões tomadas não representava um sentimento de traição à outra parte, apenas julgavam melhor para si e os ideais que se identificavam”. Para o professor e historiador Ricardo Carvalho, a grandeza do ato histórico é maior do que o próprio personagem. “O mais interessante é o seu ato de insubordinação, que nunca vai se saber o porquê ou se ele se enganou. Entretanto, é inegável que a Batalha de Pirajá foi o dia D da Independência da Bahia, a batalha decisiva. Sem a vitória não teríamos conquistado a libertação nacional”. Carvalho diz mais: se fosse ele o corneteiro, faria exatamente o que Luís Lopes pode ter feito. “Fazendo o que fez, Lopes garantiu a vitória em Pirajá, conseguiu escrever uma página marcante da história do nosso país e da Bahia. Fazendo o que fez, ficou na história. Uma forma de não ser esquecido é fazer justiça ao corneteiro e preservar a memória desse personagem único”. Nas batalhas, o toque de corneta não é reprodução de som ou uma nota musical, mas sim um código, como esclarece o Coronel Silva, do Comando do Exército da 6ª Região Militar: “É um toque que facilita a manobra e a intenção do comandante. É um comando, a minha ordem que o meu batalhão vai entender”. O degolar – atualmente em desuso – significa a intenção de que não haja reféns. Já o avançar indica partir para o combate.Correio 24hs

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