Se não tem selfie, não existe

Dona Polônia não acreditava que o homem tivesse conquistado a lua, muito menos caminhado em cima e pulado, conforme ouvira falar dos jovens e de alguns vizinhos da aldeia hippie de Arembepe. Sorria sempre que abordado o assunto, exibindo a sua gengiva sem dentes; sorriso bonito, iluminado pelo brilho dos olhos como de todos os desdentados deste país tropical e injusto. Dona Polônia não acreditava nessa história da transmissão pela TV, nem aparelho de TV ela tinha e nem televizinha ela foi no tempo das andanças de Neil Armstrong, e essa coisa de ir até a lua não fazia sentido para quem na sua vivência de miséria, viuvez e dependência dos outros, mal conhecia Itapuã, ponto final da linha de ônibus onde seu ex-marido vendia caçonete e arraia.

A conversa em torno da chegada do homem na lua aflorou na expectativa da chegada da aparição do Kohoutek, naquele verão de 1974, que seria visível no hemisfério Sul, com toda clareza; hippies de várias partes do mundo e hippies de fim de semana de Salvador acorreram à aldeia para não perder o esplendor da luz cósmica que não veio; soubemos semanas depois que o cometa já tinha passado e a sua cauda estelar vista no hemisfério Norte, longe de nossos olhos ávidos por qualquer sinal sublime da natureza. O vexame do Kohoutek fortaleceu a convicção de Dona Polônia de que o mundo é apenas uma lata de água na cabeça.

Durante anos lamentei Dona Polônia não ter acreditado na chegada do homem na lua. Ora me dei conta de que quem sabe a velha tivesse razão, o que mexeu profundamente com minhas convicções. Talvez as imagens que eu assisti, naquele 20 de julho de 1969, sentado no chão da sala da casa de meu avô, a tia Beatriz explicando cada detalhe da transmissão, minha avó cochilando de porre, não fossem verdadeiras que nem as aventuras de Tom e Jerry, Bonanza e do Zorro, que naqueles idos era o meu mundo.

Nelson, você, a essa altura da vida duvidando da chegada do homem da lua, se é isso que estou entendendo? Tenho meus motivos, embasados no respeito à memória de Dona Polônia e de minhas atualizadas convicções em relação à vida. Cadê o selfie do Neil Armstrong? Se não teve selfie, publicação no Instagram, no Twitter ou no Facebook, não existiu. O mal é a gente achar que o mundo começa com a descoberta do fogo, a invenção da roda, o incremento da agricultura, Gutemberg, a revolução industrial, a conquista do espaço, a ovelha Dolly… Balela. O mundo começa com o selfie, a prova de nossa inserção no planeta, nós na cena, no contexto de algo real, não o hipotético descrito pelos livros, exibido pelo cinema e pela TV, ouvido no rádio, ou lido nos jornais.
Se não tem selfie, não existiu. Mas, o Armstrong não é do tempo do selfie. Eu também não sou do tempo dos dinossauros. E nem você, leitor, é do tempo da Arca de Noé. E se o famoso astronauta não levou um celular para a lua porque o aparelho não tinha sido inventado, isso reforça a nossa convicção de que o mundo começa a partir do selfie. Antes disso é tudo especulação e como não é do meu feitio inventar coisas, cogitar cenários e possibilidades, prefiro acreditar que a lata d'água na cabeça de Dona Polônia, a sua disposição de lavar a roupa no riacho, agachada, driblando a dor nos quartos e os traques no joelho, a sua infinita bondade ao compartilhar o café aguado e um bolachão comigo seja a única verdade.

É por isso que escrevo esta crônica no espírito do selfie. Repare na foto. Eu cabeludo e barbudo, sorrindo; Dona Polônia ao meu lado, exibindo as gengivas e o seu olhar iluminado com a malícia de mais de 80 anos vividos, no fundo da cena um casebre de taipa e palha. Só o selfie é convincente. Acredite em mim!

Correio 24hs

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