A ida à escola era uma rotina que se repetia diariamente, por volta das 6h30, quando Cristal Pacheco, 15 anos, saía de casa, no Corredor da Vitória, na companhia da mãe e da irmã em direção ao Colégio das Mercês, onde estudava. Nesta terça-feira (02), no entanto, não só o ato cotidiano, mas a vida da garota foi trágica e precocemente interrompida por um tiro no peito numa tentativa de assalto em frente ao Palácio da Aclamação, antiga residência dos governadores da Bahia. O prédio fica a cerca de 100 metros distante de onde a adolescente morava e a pouco mais de 200 metros do quartel-general da Polícia Militar.
Cristal, a mãe e a irmã foram abordadas por duas mulheres que anunciaram um assalto. Uma delas, que carregava uma pistola, colocou a arma no peito da garota e disparou quase à queima-roupa, matando a menina na hora.
Uma das suspeitas de matar Cristal foi presa no começo da noite desta terça-feira (02) e confessou. Após ser capturada, a mulher, que usava roupas pretas no momento do crime, foi encaminhada para o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), onde prestou depoimento.
De acordo com a diretora do DHPP, a delegada Andréa Ribeiro, apesar de confessar a participação no crime, a mulher não informou a autoria do disparo que matou a estudante. Em depoimento, a suspeita, que não teve a identidade divulgada, afirmou apenas que houve um tiro acidental que passou de raspão pelo seu braço e em seguida acertou a adolescente.
A mãe e a irmã de Cristal não foram feridas. Muito abaladas e em estado de choque, elas não permaneceram no local durante a perícia. Amiga da família, Eliene de Brito Alves, 43, esteve com a mãe e explicou o que foi descrito por ela sobre o momento do crime:
“Sandra [mãe de Cristal] está falando muito pouco, mas disse que abordaram elas e anunciaram um assalto. Não disse o porque de terem atirado, mas que não houve qualquer reação”, afirma.
Eliene é amiga da família de Cristal (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) |
Câmeras de Segurança
Imagens de câmeras de segurança flagraram o crime e mostram as duas mulheres emboscando a família. Tudo ocorreu em questão de segundos e, logo depois, Cristal caiu apoiando-se na parede do Palácio da Aclamação, após receber o disparo. Médico e perito do DPT, Marcos Mousinho foi um dos responsáveis por examinar o corpo da adolescente. Ele afirma que o disparo foi realizado à curta distância.
“Não foi um disparo à queima-roupa, mas foi muito próximo. A contusão no peito da vítima indica que o tiro ocorreu talvez a 40 ou 50 cm de distância. Um tiro direcionado para matar”, explica.
A insegurança da região era o que motivava a mãe da adolescente a acompanhar as filhas todos os dias até a escola. “Estavam as duas acompanhadas da mãe. Ela sempre se preocupou com a segurança de Cristal e Fernanda, buscando e levando. No entanto, nem isso pôde impedir que Cristal morresse nos braços dela”, explicou Eliene.
Devido ao ocorrido, o Colégio das Mercês suspendeu as aulas e os pais, assustados, buscaram os filhos na escola. Sobre o episódio da morte de Cristal em específico, a instituição se manifestou através de nota e decretou três dias de luto. “Nosso sentimento é de muita tristeza, compaixão e solidaridedade com a família”, diz um trecho do texto.
Logo depois do tiro atingir a adolescente, as duas suspeitas correram do local do crime em direção ao Passeio Público, como as câmeras indicam. Após tomar conhecimento do caso, as autoridades policiais começaram buscas na região do Campo Grande, no 2 de julho e também na Ladeira da Preguiça, onde chegaram a entrar em vielas, mas não encontraram nenhuma das duas mulheres, uma delas só foi localizada no começo da noite.
Sobre a prisão da suspeita, a delega Andréa Ribeiro afirmou que a mulher nega que tenha sido a autora dos disparos, “mas temos elementos nas investigações, nos autos do inquérito policial, que nos permitem afirmar que a suspeita apresentada estaria andando armada desde o mês de junho nas imediações do Centro da Cidade”, diz.
A arma do crime ainda não foi encontrada. Com base no estojo achado no local do assalto, a suspeita da Polícia Civil é de que seja uma pistola de baixo calibre, que atingiu a vítima com disparo único.
Ainda de acordo com a delegada, a mulher possui mandado de prisão em aberto por tráfico, expedido pela 1ª Vara de Tóxicos de Salvador. Ela seria usuária de drogas e costumava circular pelo centro da cidade.
Do DHPP, a mulher foi encaminhada para perícia no Departamento de Polícia Técnica (DPT) e depois para o sistema prisional. A segunda suspeita do crime segue sendo procurada pela polícia.
Mãe em choque
Amigo da família de Cristal Pacheco há 13 anos, o eletricista naval Fábio Nascimento Rodrigues de Oliveira, 54 anos, procurava palavras para tentar explicar como estão os pais da jovem, Sérgio e Sandra. Fábio estava no Instituto Médico Legal (IML) resolvendo as burocracias para liberar o corpo da jovem (leia sobre o enterro de Cristal nas páginas 14 e 15 desta edição), já que os pais não tinham condições de cuidar do assunto.
“Não tenho palavras para dizer como está Sandra. Digo assim, morreu junto com Cristal. O que pode dar força agora à Sandra é porque ainda tem Fernanda (filha mais nova). Mas também me pergunto: E Fernanda, que viu a irmã morrer, como vai ficar? Aí digo, vai encontrar consolo na mãe, porque a mãe estava perto dela e viu quando a irmã morreu”, lamenta.
Ele disse que não gostaria de estar ali representando o amigo dessa maneira, em uma situação dolorosa. “O pai não teve condições de vir, a mãe não teve condições. Estamos aqui representando a família num momento em que não gostaria de estar. Não queria estar aqui onde estou nesse momento. Não é agradável, não é bom, estou me segurando aqui. É difícil, não tem palavras para dizer. Não tenho palavras para dizer o estado que se encontra Sandra”, desabafou Fábio.
‘Uma menina cheia de sonhos’, diz amiga da família
Alegre, divertida, estudiosa, tímida, muito talentosa e educada. Essas são apenas algumas das principais características que ficarão na lembrança de quem conviveu com a adolescente Cristal Rodrigues Pacheco, uma garota como as outras, “cheia de sonhos”, que cursava o 9º ano do Colégio das Mercês e tinha muitas promessas de futuro.
“Cristal era uma menina cheia de sonhos, se dedicava demais aos estudos e, hoje (ontem), foi tudo levado! Dela e dos pais”, lamentou Eliene de Brito Alves, 43, amiga da família e mãe de uma das amigas da garota.
“Minha filha é amiga de Cristal desde os dois anos de idade. Ela está muito abalada de perder a amiga, assim como a escola toda quando soube da notícia”, acrescentou.
Ainda segundo Eliene, assim como a mãe de Cristal, outros pais e mães que moram na região do Campo Grande têm por hábito levar as crianças e adolescentes à escola para tentar protegê-los da insegurança constante. “Sempre se preocuparam [os pais de Cristal] com a segurança de Cristal e Fernanda [irmã da adolescente morta], buscando e levando. No entanto, nem isso impediu ela de morrer nos braços dos pais”, lamentou.
Mãe de uma das melhores amigas de Cristal, Edilania de Oliveira, 35, afirmou que a vítima era uma garota doce e que a perda é grande também para os amigos. “Muito educada, uma menina doce, comportada. Não tenho palavras para descrever. Minha filha está abalada, sem acreditar. Está todo mundo sem acreditar. Estive com a mãe dela mais cedo, está dilacerada, a família toda dilacerada. E nós mães, que temos filhos, a mesma coisa. Ela perdeu a filha dela e a gente perdeu um pedacinho também”, afirmou.
Cristal foi morta por volta das 6h30 (Foto: Wendel de Novais/CORREIO) |
Moradores reclamam de assaltos na área
Moradores das imediações do Palácio da Aclamação, no Campo Grande, relatam que tentativas de assalto como a que vitimou Cristal Pacheco são comuns naquela região. Às 6h30, o horário em que vítima costumava sair para a escola, o risco é ainda pior, segundo relatos colhidos pela reportagem.
Vivendo no entorno do Campo Grande há 11 anos, Ricardo*, que prefere não revelar o sobrenome, reclamou de uma escalada de violência no bairro. Ele destacou ainda o fato das situações [a morte de Cristal e os assaltos frequentes] acontecerem perto do Quartel dos Aflitos, sede da Polícia Militar da Bahia.
“Aqui é uma cracolândia, cheia de usuários de drogas que fazem esses assaltos. E o poder público não faz nada. Não fecha a praça em frente ao Palácio, como faz no Campo Grande e na Piedade. E a gente fica a mercê porque volta e meia tem assalto e ficamos expostos ao pior, como aconteceu hoje (ontem). Isso debaixo dos olhos da PM, perto do comando deles”, desabafou o morador.
Outra moradora da área, Márcia Palma, disse ter ficado muito abalada com a cena da morte de Cristal. Ela comentou do medo que os moradores vivenciam no local. “Todo dia é isso. Não aguentamos mais. Eu tenho uma filha de 9 anos e poderia ser ela. Aqui a violência está muito grande, você não pode andar com uma bijuteria porque eles se confundem [acham que é joia de ouro ou prata] e acabam tentando assaltar. Eu mesma, com minha filha, já sofri tentativa e tive que entrar em um condomínio pedindo socorro”.
Ainda segundo Márcia, a região do Passeio Público é um ambiente que tem a presença contínua de usuários de drogas e muitos fazem os assaltos. “Eles ficam aqui sempre”
Vidas perdidas para a violência
Três casos impactantes de vidas perdidas para a violência crescente ocorreram em Salvador nos últimos três meses. Em duas situações, em junho e julho, as vítimas foram baleadas em tentativas de assalto. No caso ocorrido no começo de agosto, a pessoa baleada fazia uma caminha matinal de rotina. Relembre:
Ciclista morto no Dique – O professor de educação física Rodrigo Santos Castro, de 24 anos, morreu depois de ser baleado quando andava de bicicleta no Dique do Tororó, na noite da quarta-feira, 1º de junho. O crime ocorreu por volta das 21h, quando a vítima, que faria 25 anos no dia 7 do mesmo mês, conversava ao telefone com a namorada. Após ser baleado, Rodrigo chegou a ser socorrido para o Hospital Geral do Estado (HGE), mas não resistiu aos ferimentos. Segundo os familiares, ele estava praticando ciclismo para treinar para um concurso da polícia quando foi abordado por assaltantes;
Nutricionista baleada – No dia 22 de julho, a nutricionista Esperança Cedraz Brandão foi baleada durante uma tentativa de assalto no bairro de Nazaré, entre 6h e 6h15. O crime aconteceu na Rua Olga Benário, atrás do Hospital Santa Izabel, onde a vítima trabalha. O tiro foi dado por um dos dois homens que a abordaram e atingiu a região próxima ao olho da nutricionista. Ela passou por cirurgias e Unidade de Terapia Intensiva (UTI), de onde teve alta no dia 25 do mesmo mês. Segundo o hospital e familiares, ela segue em recuperação e tem boa evolução.
Bala perdida atinge idosa – Na segunda-feira, 1º de agosto, pouco antes das 6h, a aposentada Maria de Lurdes Alves dos Santos, de 65 anos, fazia sua caminhada diária matinal, quando foi atingida por uma bala perdida durante uma ação envolvendo policiais e homens armados, na Avenida Barros Reis. Ela foi atingida no abdômen por uma bala e encaminhada para a UTI do Hospital Ernesto Simões. Ontem, a aposentada não resistiu aos ferimentos e faleceu. “Ela teve duas paradas cardíacas. Uma foi pela manhã e outra agora de tarde, por volta das 16h30. Infelizmente ela não resistiu”, disse Ricardo Corrêa, genro da vítima. “Ainda estamos sem saber o que faremos em relação ao enterro”, completou o genro. Dona Maria de Lourdes chegou a passar por duas cirurgias após a internação. A primeira, para estancar a hemorragia na região do abdômen, onde recebeu o projétil da bala. A segunda, porque a artéria femoral teve um sangramento.
Identidade da idosa também foi perfurada (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) |
A Polícia Militar da Bahia (PM-BA) foi procurada pela reportagem para responder sobre a reincidência de crimes violentos logo no início da manhã, quando quem estuda e trabalha vira alvo da criminalidade. Questionada sobre ações de inteligência que reduzam acontecimentos como estes nas primeiras horas do dia, a corporação não respondeu até a publicação desta reportagem.
Autoridades lamentam assassinato
Em coletiva de imprensa, o prefeito Bruno Reis lamentou a morte da adolescente como mais um episódio de violência brutal na cidade e se disse indignado com a situação. "O sentimento é de indignação. Aonde nós vamos parar? Semana passada foi uma amiga nossa, nutricionista [baleada], ontem [segunda-feira, 01] uma senhora de 65 anos. Essa é uma constatação, com cenas lamentáveis todos os dias, de que o governo não tem mais condições de resolver o problema da segurança pública", declarou o gestor , que disse ainda que a prefeitura está colaborando com as investigações.
O pré-candidato a governador da Bahia, ACM Neto (União Brasil), também lamentou a morte de Cristal e citou a proximidade do local do crime com a sede da PM-BA como simbolismo da falta de segurança em todos os espaços.
“Essa menina morreu pertinho do Quartel dos Aflitos, ou seja, ao lado da sede do Comando-Geral da Polícia Militar da Bahia, debaixo dos olhos das autoridades de segurança pública. Quer dizer, nem ao lado do Quartel dos Aflitos nós temos mais uma área segura em Salvador”, lamentou em entrevista à Rádio Sociedade.