Fé, folia e feijoada: conheça o padre que libera o pátio da igreja para o furdunço

Foto: Marina Silva/CORREIO

Fundada em 1594, a histórica igreja do Santo Antônio Além do Carmo é o lar tranquilo e calmo do carismático pároco Ronaldo Marques Magalhães, 61 anos. Quer dizer, nem sempre o lugar é tão tranquilo e calmo assim, e muito menos o religioso que o comanda. O padre, que nesta semana completa 20 anos à frente da comunidade religiosa, admite ter uma alma festeira e ser um fã de Carnaval.

Não à toa, o pátio da paróquia pode ser considerado um dos principais palcos do Carnaval de Salvador este ano – claro que num contexto em que os circuitos oficiais da folia estavam fechados, por conta da pandemia. E é do religioso, também, a responsabilidade de um já conhecido evento anual: a Feijoada do Padre, que caminha para a 19ª edição, sem registro de indigestão, embora haja relato de ressaca entre os fiéis.

“A paróquia tem muitos projetos sociais, mas poucos recursos para realizá-los. E como existe toda uma comunidade ativa, dos jovens aos mais idosos, a realização da festa possibilitou reunir recursos que ajudaram a manter pastorais como a da Criança, da Família”, revela o pároco, que estende a justificativa para os demais eventos realizados nas áreas destinadas ao furdunço, ao lado do templo.

No Carnaval foram ao menos cinco festas com atrações como Filhos de Jorge, Alexandre Peixe, Jau e É o Tchan, sempre cumprindo número previsto em decreto governamental. Já a feijoada só ocorre no terceiro domingo de setembro, animado por grupos de samba e cantores como Márcio Victor, Mariene de Castro e Ju Moraes – que já pintaram por lá em edições anteriores. Os risos e os momentos de descontração, vivenciados enquanto come o seu prato favorito, leva o padre Ronaldo para as lembranças da infância.
Memória afetiva
Enquanto conversava com a reportagem, semanas antes do Carnaval, por um momento a mente do padre viajou para a sua cidade natal, Pesqueira, no agreste pernambucano. Ali, o cheiro do feijão preto feito pela avó materna, dona Tereza Marques, tomava conta de toda a casa. Ao redor do fogão improvisado feito com chapa de ferro, todos da família esperavam apenas o “está pronto” para se deliciar.
“O feijão que faço é o mesmo dela. Aquele feijão preto consistente, feito com carne de porco. É o feijão consumido no agreste de Pernambuco. Minha avó também fazia sarapatel. Todos da família adoravam ir para a casa dela, tinha sempre café quentinho, feito na hora. Eu brincava e ia aprendendo sobre a importância de coisas como a alegria, o amor, a confraternização”, recorda.

A verve celebrativa que o padre carrega ainda tem influência dos pais, a doméstica Maria de Lurdes Marques e o funcionário público Francisco Magalhães. Em casa, eles sempre gostaram de festas, aniversários e confraternizações com amigos e familiares.
Como resultado, o pároco passou a ter o Carnaval como festa favorita, seguida do São João, por causa do forró e das comidas típicas nordestinas. “Éramos envolvidos em marchinhas, íamos para os carnavais que aconteciam nos antigos clubes sociais. A gente sai para a rua para brincar e compartilhar muitas risadas”.
Na infância e adolescência, o padre conta que ia para a igreja, mas confessa que não era dos jovens mais assíduos. O interesse maior pela vida religiosa veio aos 23 anos, quando se sentiu tocado por Deus e passou a frequentar a missa.

Chegada na Bahia
Após passagens por um convento dominicano no Rio de Janeiro e por cursos de Filosofia e Teologia em São Paulo e Belo Horizonte, respectivamente, desembarcou na Bahia pela primeira vez em 2001. Na cidade de Cruz das Almas, no Recôncavo, ficou responsável por projetos sociais.

“O trabalho em Cruz das Almas foi espiritual e social. Eu organizava cursinho pré-vestibular para jovens carentes, cheguei a montar uma farmácia popular com a comunidade local, voltada para atender aos mais pobres. A gente ainda realizava aulas de música, uma forma de expressão que está enraizada na própria cultura baiana”, comenta.

Na Bahia, o pároco teve contato com uma cultura próxima da de Pesqueira. Um modo de vida marcado por desafios como as desigualdades sociais, mas que também tinha no seu povo uma forma alegre de levar a vida, com um gosto por festas e confraternizações, que unem as mais diferentes pessoas.
Após o falecimento de alguns padres mais velhos na Arquidiocese de São Paulo, o padre precisou passar alguns meses na capital paulista, dando apoio para algumas missões. A promessa de retorno a Bahia foi concretizada no dia 19 de março de 2002. Mas o desembarque, para a surpresa do religioso, não foi em terra cruz-almense. A diocese precisava de um padre para assumir a Paróquia do Santo Antônio Além do Carmo.

No primeiro ano à frente da paróquia, em 2002, o padre Ronaldo resolveu fazer uma feijoada para algumas pessoas da comunidade, algo pensado para satisfazer a vontade de uma comida que ama, e fortalecer as relações entre os fiéis e amigos. O cheiro e sabor do feijão preto, feito com muita carne de porco, atraiu 500 pessoas já na estreia.

Com o passar dos anos, a feijoada ganhou fama e virou um acontecimento cultural, seguido religiosamente por muitas pessoas. Chegou a reunir 3.500 em uma única edição, contribuindo para a arrecadação financeira da Igreja. O dinheiro levantado pela Feijoada do Padre é usado em questões como a reforma do telhado histórico do espaço.
Em 2020, o CORREIO revelou que o total de R$ 570 mil foram necessários só para recompor o teto da igreja. Na ocasião, a Arquidiocese de Salvador mobilizou uma campanha de arrecadação de fundos e doações, que levantou R$ 200 mil para o restauro entre fiéis, amigos e frequentadores da igreja.
“A gente tem dívidas e parcelas de pagamento que aparecem com as fases de manutenção, ficando na faixa de R$ 30 mil. A gente segue na luta para ir juntando os valores. Por causa da pandemia, nos últimos dois anos, não aconteceram shows. Mas a feijoada não deixou de ser realizada. A gente tem feito em formato de drive thru”, explica o religioso.

Ecumenismo
As feijoadas passaram a reunir diferentes pessoas, das mais variadas crenças religiosas: de adeptos do candomblé aos fiéis de igrejas evangélicas. E diante da diversidade da festa, bem avaliada pelos fiéis locais, a importância social também ganha destaque, ainda mais no contexto atual.

“A pandemia deixou tudo ainda mais difícil, pois aumentou a situação de pobreza das pessoas. Todos os dias, uma multidão chega na porta da igreja para pedir comida, dinheiro para comprar remédio, gás, roupas, calçados”, revela o pároco.

Além do aspecto cultural e social, os números envolvidos na realização da Feijoada do Padre também chamam a atenção. O religioso chega a liderar uma equipe de mais de 15 pessoas e a fazer, em média, 200 kg de feijoada a partir de sua própria receita.

Padre Ronaldo espera que a sua história e da própria feijoada possam tocar as pessoas para a importância do amor e da partilha, características que são importantes para o enfrentamento da pandemia. O pároco carrega a fé em dias melhores e conta as horas para voltar a reunir os fiéis e os amigos na igreja e no pátio, com a alegria do povo e o amor de Deus sendo as únicas contaminações possíveis.

Fonte: Correio 24hs

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